As mulheres de Beauvoir

Simone de Beauvoir, escritora, filósofa e feminista francesa, teria completado 100 anos de vida em 2008. Era adepta da corrente filosófica do existencialismo, o que é bastante perceptível em suas obras e até constitutivo delas. O livro A mulher desiludida, bastante polêmico, está fazendo aniversário de 40 anos. É composto de três romances e foi publicado na França em janeiro de 68 pela editora Gallimard, que, aliás, detém os direitos de publicação da obra de Simone de Beauvoir na França.
Simone terminou de escrever A mulher desiludida (La femme rompue) em maio de 1967. Todas as histórias têm como personagem principal uma mulher. São mulheres em crise, sentindo-se traídas, solitárias, fracassadas, acuadas e angustiadas, em situações e graus diversos. Não são narrativas de ação, mas textos intimistas, que buscam traçar um perfil psicológico das personagens. Ou seja, não há um ápice e uma resolução do enredo, como, aliás, na maioria dos romances de Beauvoir.
Os críticos franceses, à época, não receberam bem o livro – como também não gostaram d’O segundo sexo, em 1949 - e chegaram a dizer que a Gallimard só continuava a publicar Simone de Beauvoir por pena.
O primeiro romance que ela publicou foi A Convidada (1943), porém o mais conhecido é, provavelmente, Os Mandarins (1954), uma convocação à arte engajada que ganhou o prêmio Goncourt, a mais importante distinção literária da França. Ao todo Simone de Beauvoir escreveu sete romances, uma peça de teatro, um depoimento, cinco livros memorialísticos e dez ensaios. Dentre os ensaios está a sua obra mais conhecida e influente: Le Deuxième Sexe (O Segundo Sexo), de 1949, um estudo apaixonado pela abolição do que ela chamou o mito do "eterno feminino". Esta obra tornou-se um clássico da literatura feminista e marcou o início da preocupação com a condição das mulheres na obra de Beauvoir.
O romance A mulher desiludida surge, então, num contexto de maturidade filosófico, política e artística da autora, no entanto, num período bastante conturbado, pois recentemente a crítica havia atacado duramente dois livros de Beauvoir: Uma morte muito suave (Une mort très douce), de 1964, sobre a morte da mãe dela, e As belas imagens (Les belles images), de 1966, sobre a sociedade de massa e a solidão dos indivíduos.
Um outro contexto bastante interessante do surgimento do livro é a ascensão do movimento feminista à época. Muitos estudiosos consideram que o grande vencedor do Maio de 68 francês foi o movimento de mulheres, por ter posto em discussão o privado, desconstruindo depois a própria oposição público x privado e dizendo ao mundo que as questões ditas “individuais” são também políticas, por isso a condição das mulheres, antes encarada como situação pertencente à esfera do privado, diz respeito sim à esfera do público, do político. E é neste momento que Simone de Beauvoir está começando a participar mais ativamente do movimento feminista, principalmente na luta pelo aborto livre.
O primeiro romance de A mulher desiludida chama-se A idade da discrição (L’âge de discrétion). Uma intelectual de sessenta anos, casada com um cientista de muito sucesso e também sexagenário, nos conta, num relato cheio de angústias e descobertas, como está sendo se tornar idosa. A personagem está incomodada porque o marido, André, não aceita a velhice, enquanto ela encara essa fase da vida com naturalidade. Essa discordância a atormenta, pois ela é uma adepta do mito da “comunicação total” entre um casal – “acreditava-nos transparentes um para o outro, unidos, soldados como irmãos siameses”, diz.
Ora, Simone de Beauvoir era, como já disse, feminista e existencialista, e a sua literatura não nega isto. Para o pensamento existencialista, o outro é sempre um outro, mesmo que se tenha relações de fraternidade – ler a respeito disto o belíssimo romance de Simone intitulado O sangue dos outros, de 1945. Daí a crítica feita em A idade da discrição à crença de que se pode conhecer o outro tão intimamente a ponto de uma quase “fusão”. O principal no romance é a relação da mulher com o marido, embora o título sugira que seja a velhice a temática maior. Ao descobrir que não sabe tudo sobre André, a personagem sente-se aturdida e passa a se perceber velha, num sentido negativo. Paralelo a isto há uma profunda desilusão com o filho e com um livro que acabara de publicar.
Embora a exposição das idéias seja brilhante e inteligentíssima, a narrativa deste romance é, às vezes, demasiado objetiva, o que deixa um ranço de “pensata”: como se a autora tivesse criado suas personagens apenas para que ilustrassem idéias pré-concebidas. No entanto, há momentos em que sentimos o prazer de uma argumentação sólida, de um autoconhecimento invejável... A personagem se mostra lúcida, intensa e segura de si, apesar da crise. Isso é refletido na narrativa, que se torna fluida e visceral.
A história aborda ainda, de forma superficial, a esquerda francesa e a questão de classe. Segundo Simone de Beauvoir, dos três romances publicados em A mulher desiludida, este foi o que ela menos gostou, pois tratou do tema da velhice de forma “superficial”. Mais tarde a autora viria a “acertar as contas” com a problemática, pois publicou em 1970 um longo ensaio chamado A velhice.
O segundo texto, intitulado Monólogo, é violento e desesperado. Deve ser lido de um fôlego só. A personagem chama-se Muriel, mulher que foi bastante reprimida na infância e tem o sonho burguês de assepsia moral e de uma família de “propaganda-de-margarina”. Muriel está sozinha, em seu apartamento, na noite de Ano Novo. Ela está furiosa com todos, que pensa quererem espezinhá-la e rir-se dela. Acha que para superar a humilhação, deve conseguir seu marido de volta para assim reestabelecer a sua família. O que motivou a desagregação da família foi um episódio aterrador: Sylvie, a filha, não suportando a conduta opressora e punitiva da mãe, que se projetava nela, havia suicidado-se há cinco anos. Depois disto, Muriel é afastada do filho, Francis, garoto de 11 anos de idade.
Simone de Beauvoir foi genial ao escolher como recurso literário o monólogo: é ininterrupto, traz a idéia de loucura, de esquizofrenia. Já a supressão da vírgula nos força a freqüentemente recomeçar a leitura da frase, o que nos faz sentir frente a uma pessoa desequilibrada, com quem nos custa estabelecer diálogo e entender o sentido de suas idéias. A angústia expressa nessas páginas é intensa, mas tão tanto quanto a compaixão, sentimento desprezado pelos existencialistas.
A mulher desiludida, romance que dá nome ao livro, é o mais longo e está escrito no formato diário. Quem conta a história aqui é Monique, de quarenta anos, casada há 20 e com duas filhas, ambas adultas e já morando fora de casa. Monique deixou de trabalhar há 10 anos para se dedicar mais ao lar – marido e filhas. Porém nos últimos tempos Maurice, o marido, está diferente. A mulher tenta não pensar no assunto, apoiando seu amor nas lembranças do casamento feliz de outras épocas. Até que descobre a verdade inapelável: ele tem outra. E é a partir dessa descoberta que Simone de Beauvoir vai nos mostrar, com maestria, o que uma mulher pode fazer a ela mesma em nome do papel que ocupa nesta sociedade burguesa.
Monique passa todo o tempo a pensar em variáveis para desmontar o enigma do relacionamento de seu marido com outra mulher ou gasta os dias a maquinar planos mirabolantes para desmoralizar a sua “rival”, constranger o marido ou tê-lo de volta. Ela parece tão pequena, tão fútil! Tão escravizada! É possivelmente mais angustiante do que o Monólogo, pois enquanto lá não vemos saída para Muriel, em A mulher desiludida ainda podemos ter esperanças de uma “volta por cima”, que Simone habilmente não nos deixa acompanhar, apenas insinua. Beauvoir disse que este romance deve ser lido como uma história policial, no sentido de que o leitor deve prestar atenção às pistas deixadas no diário de Monique com o intuito de conhecê-la de verdade, longe da representação que ela cria dela mesma e de sua vida.
Simone de Beauvoir revelou que muitas mulheres a escreveram sobre este romance. Elas se identificavam com Monique, tinham histórias parecidas e, portanto, tomavam o partido da personagem contra o marido e a amante. A autora, em seu livro autobiográfico Balanço Final, declarou que ficou aborrecida com essas interpretações, pois pretendia justamente o contrário: uma crítica à mulher dependente.
A mulher desiludida foi o romance mais atacado do livro. Alguns críticos disseram que o romance era “água-com-açúcar”, o que demonstra estreiteza ou má vontade para com a autora e a temática feminina, pois fica claro, pra quem conhece o mínimo sobre a feminista existencialista que é Beauvoir, que o romance é como uma “sacudida” nas mulheres. Simone relatou, também em Balanço Final, que algumas feministas ficaram indignadas porque ela não criou uma heroína, uma mulher autônoma e bem-resolvida que saísse da crise.
E por que reunir os três romances em um livro? Há uma unidade neles: a temática feminina, óbvio, mas, além disso, a abordagem, a partir do fracasso, da angústia e da solidão, de histórias facilmente encontradas no universo feminino. Pode-se pensar que o fracasso, n’A mulher desiludida, é o fracasso como mãe, intelectual e esposa, e que a angústia e a solidão advêm daí.
Não. Simone de Beauvoir despreza os “fracassos” das personagens. Isso para desconstruí-los: o que é ser uma intelectual e escrever best-sellers? O que é ser mãe e ser uma boa mãe? Qual o papel que a sociedade imputa a uma mulher casada? O que significa ter um casamento feliz? Ela vai às estruturas da nossa sociedade e faz uma crítica atroz ao modelo social burguês e às mulheres que ainda não se tornaram seres humanos íntegros, independentes, livres, autônomos.
Vindo este livro de Simone de Beauvoir, “a escandalosa”, que optou por não casar, morar só, não ter filhos e manter com Sartre, seu companheiro, uma relação baseada na individualidade do outro, não podemos ignorar a discussão acerca da família, do modelo de família nuclear. A crítica à família está no Monólogo, quando Muriel, na tentativa de ser uma “boa” mãe – ou seja, ter sucesso ao incutir na filha a moral e os valores patriarcais – acaba por levar Sylvie ao suicídio. E por que uma mulher tem de ser uma boa mãe? Aliás, por que tem de ser mãe? O papel social atribuído às mulheres é discutido por Simone de Beauvoir n’O segundo sexo, ao cunhar a famosa frase “não se nasce mulher, torna-se”. Ou seja, os papéis são atribuídos às pessoas através de convenções sociais, e não biologicamente, portanto são culturais e não naturais, podendo ser subvertidos. A ideologia se encarrega de nos fazer pensar que os valores são universais e os papéis dos sexos são naturais. Daí a surpresa de muitos ao encontrar uma mulher que não quer ter filhos!
A autora aborda também o apego que as mulheres têm às instituições, principalmente ao casamento e à família, claro. A personagem de A idade da discrição acreditava, no início do romance, que tinha por trás dela um bonito passado, sólido, e por causa disso estava realizada e poderia suportar a velhice. Muriel evoca constantemente, do âmago de sua loucura, a “impecável” mãe que fora. E Monique usa o amor morto como pretexto para continuar a busca pela reconstituição de seu casamento.
As três mulheres chegaram ao fundo do poço e foram obrigadas a encarar suas fraquezas. A primeira, ao que tudo indica, terá ainda momentos de tensão com a velhice, mas saberá conviver com a idade. A segunda parece estar agonizando - a própria Simone, na sua autobiografia, diz que para Muriel só resta a loucura ou o suicídio. E a terceira, fomos obrigados a abandoná-la num momento em que fica indicada um tentativa de resistência.
Vista por esse ângulo – da exposição das fraquezas - Simone de Beauvoir é mais nitidamente feminista e existencialista. É necessário que as mulheres passem por uma situação extrema para que tenham a “revelação” – e isto em Beauvoir lembra a epifania presente em Clarice Lispector – da sua real condição - vejam que o que há é só o “deserto do passado”, como uma das personagens diz, citando Chateaubriand - e assim sejam obrigadas a escolher, “existencialísticamente” falando, com toda a angústia que a necessidade de escolhas pode trazer, o que vão fazer de suas vidas.
Pois ousemos a escolha, com todos os riscos que ela traz! Este livro completou quarenta anos e como é doloroso perceber a extrema atualidade de sua temática! As mulheres, desiludidas, devem buscar uma nova relação com o mundo e com os outros, livres da dependência, do vitimismo, almejando ser indivíduos completos. Neste sentido, Beauvoir deixa a sua contribuição, como catalisadora de um processo.