Minha vagina era a minha aldeia

Trecho de "Monólogos da Vagina", peça teatral e livro da feminista Eve Ensler. O título é meio chocante e a mídia talvez tenha abordado a obra como coisa "exótica", "bizarra", ou sei lá o quê. O fato é que a li aos 16 anos, em 2004, e foi uma delícia indescritível, choro e riso se misturando ali. Apresento a parte que mais ficou na memória, pela delicadeza com que a mulher bosniana fala, e pela crueldade dos seus algozes.

Minha vagina era a minha aldeia

Minha vagina era verde, rios delicados, campos
cor-de-rosa, vacas mugindo, sol descansando, doce
namorado passando levemente um macio pedaço de
palha.

Há alguma coisa entre as minhas pernas. Não sei o
que é. Não sei onde está. Eu não toco. Não agora. Não
mais. Não desde.


Minha vagina era muito animada, não podia
esperar. Tantas palavras para dizer, tantas palavras
para pronunciar. Tentava sempre. Não podia parar
de dizer oh sim, oh sim.

Não, desde que sonhei que haviam costurado um animal
morto lá embaixo; que o haviam costurado com uma
grossa linha preta de pescar. E o cheiro ruim de animal
morto não pode ser removido. Sua garganta foi cortada e
sangra através de todas as minhas roupas de verão.

Minha vagina cantando todas as canções para
meninas, todas as canções acompanhadas pelos
sinos das cabras, todas as canções campestres do selvagem
outono, canções de vagina, canções do lar da
vagina.

Não, desde que os soldados enfiaram um longo rifle
dentro de mim. Tão frio o cano de aço, abatendo meu coração.
Não sei se dispararão o rifle ou atravessarão meu cérebro
com ele. Seis deles, médicos monstruosos, usando máscaras
negras e enfiando garrafas dentro de mim. Havia varas
e um cabo de vassoura.


Minha vagina, rio onde se nada, água limpa e
cristalina espirrando contra pedras que se banham
ao sol, continuamente.

Não desde que ouvi a pele se rasgando, produzindo
sons uivantes, penetrantes; não, desde que um pedaço de
minha vagina apareceu em minha mão; uma parte do lábio.
Hoje, só tenho um dos lábios.


Minha vagina, vila viva banhada pela água.
Minha vagina, minha aldeia.
Minha vagina, vila viva banhada pela água.
Eles a invadiram, chacinaram e queimaram.
Não a toco mais.
Não a visito.
Não, desde que faziam turnos de sete dias cheirando a
fezes e carne defumada; deixando seu sujo esperma dentro de
mim. Tornei-me um rio de veneno e pus; a colheita morreu e
os peixes também.
Agora, moro em outro lugar
que não sei onde é.