Fórum Social Mundial 2009, em Belém do Pará

Ouvindo a trilha sonora mais que perfeita do filme sul-coreano Old Boy. Destaque para a música de Vivaldi, “winter”, em F menor: é toda a volúpia em viver, não no sentido meramente sexual, mas no sentido da vontade persistente, apesar de todas as barreiras. Calafrios me percorrem o corpo ao ouvi-la. Além dessa, toda as outras músicas são bastante fortes e belas, fazendo surgir sentimentos como o ódio e a vingança, grandes temas do filme.
Mas vamos ao que interessa: amanhã parto para Belém, no Pará, a fim de participar do Fórum Social Mundial 2009. Mesmo pensando o Fórum como uma tentativa bem sucedida de fazer os movimentos baseados na autonomia e ação direta se sentarem para conversar – assim como fazem os capistalistas de Davos; esse povo não entende que temos de mudar nas estruturas, e não apenas nos conteúdos! - e apenas conversar agora, não fazer mais nada, tenho bastante vontade de conhecer o espaço. Sei que ainda há militantes libertários participando do Fórum, daí a ansiedade em chegar logo lá e encontrar a galera, trocar idéias e ver como a gente pode agir nesse ano de 2009, sempre de forma direta, autônoma e anti-capitalista.
Devo chegar por lá às 8 horas de segunda. Vou levar um caderno todo em branco que dedicarei às minhas observações, sensações e contatos novos. Tentarei atualizar o blog de lá, fazendo uma espécie de “cobertura”, mas confesso que acho difícil, pois o evento é composto de um infinito de atividades das quais quero participar.
Bem, é isso! Hasta la volta! E deixo aqui um bom texto – embora de escrita um tanto truncada - sobre o processo de cooptação das lutas autônomas pelo FSM, em parceria com o Estado e o Mercado.

Êta Dortelho que eu não esqueço!




Meu amor...
Não acredito que você foi embora! Deve ser porque de fato não foi, né? Deve ser porque está presente em mim da maneira mais profunda: na minha construção como ser humano. Está nas minhas escolhas, nos meus sonhos, nas lembranças que me enchem os olhos de lágrimas...
Saudade dói muito! Há seis meses...
Segue uma música que me lembra esta criatura especial.

Amado

Como pode ser gostar de alguém
E esse tal alguém não ser seu
Fico desejando nós gastando o mar
Pôr-do-sol, postal, mais ninguém

Peço tanto a Deus
Para lhe esquecer
Mas só de pedir me lembro
Minha linda flor
Meu jasmim será
Meus melhores beijos serão seus

Sinto que você é ligado a mim
Sempre que estou indo, volto atrás
Estou entregue a ponto de estar sempre só
Esperando um sim ou nunca mais

É tanta graça lá fora passa
O tempo sem você
Mas pode sim
Ser sim amado e tudo acontecer

Sinto absoluto o dom de existir,
Não há solidão, nem pena
Nessa doação, milagres do amor
Sinto uma extensão divina

É tanta graça lá fora passa
O tempo sem você
Mas pode sim
Ser sim amado e tudo acontecer
Quero dançar com você
Dançar com você
Quero dançar com você
Dançar com você

Manifesto: Fêmeas-Irmãs e Amigas!




Tenho pensado bastante, há anos, sobre a questão das mulheres, que, para mim, não pode estar apartada das questões mais gerais da sociedade capitalista e tampouco ser considerada como uma questão que diz respeito exclusivamente a nós, mulheres - sim, penso que o machismo, o sistema patriarcal, oprimem os homens também.


Há quase dois meses tive uma experiência bastante enriquecedora que não me sai da cabeça: uma oficina de wendo - técnica de auto-defesa para mulheres. Acontece que a oficina não é meramente um repasse de técnicas, mas toda uma discussão acerca da necessidade de adotarmos posturas outras com relação ao mundo machista em que estamos inseridas. E uma das discussões travadas foi justamente sobre a forma como nós, mulheres, nos relacionamos umas com as outras - ou não nos relacionamos. Há uma idéia bem senso comum, mas que talvez tenha lá seu quinhão de verdade, que diz que as mulheres não conseguem ser amigas, são falsas entre si e só sabem competir. O que sei, realmente, é que precisamos ser mais amigas, mais solidárias, e entender - principalmente as mulheres que já atuam em movimentos sociais ou organizações políticas - que a nossa luta deve ser travada agora, com urgência, e que ela não é menos importante que a luta de classes e tampouco vai prescindir de sua necessidade "automaticamente" tão logo uma revolução social triunfe.


Há outras questões a serem levantadas, mas agora gostaria de reproduzir aqui o Manifesto: Fêmeas-Irmãs e Amigas!, que achei bem interessante, apesar de discordar, vez por outra, do tom usado na abordagem da problemática de gênero. Por sinal, uma coincidência bem feliz: estava ontem iniciando a leitura de O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, onde ela fala exatamente da necessidade de mais solidariedade entre as mulheres.


Bem, é isso! Boa leitura!




Manifesto: Fêmeas-Irmãs e Amigas!

- As mulheres serão amigas, fraternas, solidárias e sinceras.
-Exercitarão a cada minuto a capacidade de doar amizade fraterna.
-Decidirão por dizer não às rixas, buscando nas outras a si mesma.
-As mulheres a partir de hoje devem e podem mostrar seus rostos sem temores ao que dirão.
-Liberdade, igualdade, fraternidade, e caso não goste de alguém vire as costas e vá embora, em paz consigo e com as outras.
-Siga em frente sem esquecer tudo de bom que alguém já a fez sentir, e esqueça ou guarde no baú o ruim.
-Toda mulher irá encarar as outras como parte imprescindível de uma irmandade!
-Mesmo à distância, todas estão unidas.
-E distâncias serão transpostas pelas vias expressas da lealdade.
-Nenhuma mulher deitará com dúvidas; ela colocará sua cabeça no travesseiro sempre após ter em si a certeza da verdade nas demais!
-E da sua verdade.
-Não às cisões sexistas cultivadas pelos dogmas de lutas patriarcais.
-Há que se ter dentro da mulher esperança de dias melhores, de seus dias melhores, e de dias melhores para o planeta.
-Não ao medo de se contar, de se mostrar.
-Porque o amor feminino é o que nutre e se nutre não pode destruir.
-Portas abertas à partilha dos medos, das dúvidas, das indecisões que são minhas, tuas, delas...
-Toda mulher é filha de uma deusa e todas as deusas são irmãs.
-Sim às falas simples, aos ouvidos argutos que desejam acalentar, incentivar e promover tua cura, nossa cura.
-Que a acolhida ao ventre Dela seja irrestrita, na igualdade de errar, de retroceder, de mutar e aceitar a si mesmas e às demais.
-Não ao cansaço, a desistência, ao desespero e desesperança.
-Não ao não absoluto, que te impede de voltar atrás e te aproximar.
-Portas e janelas abertas ao que de ti difere, por que te completa.
-Invocamos as deusas da HARMONIA que permitem criar o fértil e acolhida a quem desarmado está.
-Que seja a ordem do dia pensar o melhor para cada um que traspassa nosso caminho, sejam os que forem.
-E se não ficarem, deixe ir em paz, sem rancores.
-Decidido está que toda mulher pode e deve ser cálida, amorosa, sincera, leve, e facilitadora dos encontros.
-Boa ouvinte, conselheira, e que saiba calar sem machucar ou desprezar.
-Que toda mulher seja capaz de gerar energia suficiente para fazer nascer em seus jardins e nos alheios a vontade de somar.
-Fica assim decidido que toda mulher terá livre acesso a este manifesto e dele desde já faz parte!
- Por que todas somos Ela, e todas somos UNA.
- E que assim seja!!!


Autoria: Iony Ming e Luciana Onofre

20 de janeiro de 2009

Palestina Livre Já! Ato na Praça do Ferreira
















Aconteceu quarta-feira, dia 14 de janeiro, à tarde, na Praça do Ferreira – uma das mais movimentadas de Fortaleza -, um ato em solidariedade ao povo palestino. O ato foi organizado pelos anticapitalistas contra o massacre em Gaza e contou com a participação de, em média, 200 pessoas.





Quem passou pela Praça do Ferreira durante o ato pôde verificar, nos painéis de fotos, a crueldade que vem sendo praticada pelo Estado de Israel contra o povo palestino. As fotografias mostravam a população civil que está sendo criminosamente exterminada, em sua maioria crianças. Havia também algumas bonecas ensangüentadas e amontoadas sobre um manto, no centro da Praça, para que sentíssemos um pouco do terror que toma conta de Gaza atualmente.





Os manifestantes fizeram um círculo e o microfone ficou à disposição de todos e todas que quisessem expressar a sua solidariedade ao povo palestino e o seu rechaço às ações do Estado de Israel. Várias pessoas se posicionaram contra o Estado de Israel e reafirmaram que a luta por uma sociedade livre, justa e igualitária, que não passa pela construção de nenhum Estado – portanto não estamos reivindicando a criação de nenhum Estado palestino e nem estamos apoiando o Hamas -, mas sim pela luta anticapitalista, organizada de forma horizontal e autônoma.





Depois de uma hora e meia de panfletagem e falação na Praça do Ferreira, resolvemos sair em manifestação até a praça do BNB, que fica a alguns quarteirões da praça onde estávamos. Usando palavras de ordem como “Palestina Livre”, “Israel é Assassino, Viva o Povo Palestino” e “Todo Estado é Assassino, Viva o Povo Palestino”, fomos informando as pessoas do Centro de Fortaleza sobre o genocídio que está acontecendo agora em Gaza. Novamente as fotos dos painéis serviram para sensibilizar, assim como a triste dramatização das crianças mortas conduzidas sobre o manto.





Ao chegar à Praça do BNB, queimamos a bandeira de Israel e nos dirigimos ao Centro Cultural Banco do Nordeste, onde acontecia um festival de rock. Lá, fizemos algumas falações, panfletagem e encerramos o ato, todos e todas de mãos dadas, juntos numa só voz e desejo: Palestina Livre!





Na próxima terça, dia 20, haverá uma assembléia de avaliação do ato e encaminhamentos para a solidariedade ao povo palestino. A assembléia será no CH da Uece, às 18 horas.





Por uma Palestina livre!
Contra o racismo, pela união e a paz entre os povos!
Contra a barbárie do capitalismo e dos Estados!
Por uma Terra sem amos!

Cronos come os filhos que fez com Gaia




O que é o tempo? Não consigo parar de pensar nisso. Seria um grande alívio, certamente; viver sem sofrer com tanta antecedência as fatalidades...

Esses dias estive bastante ocupada. Terminei de ler A Montanha Mágica, livro muito bom, intrigante, que trata do tempo de maneira profunda e belíssima. Engraçado, geralmente choro com livros profundos. Mas é que A Montanha Mágica fala de coisas profundas com certa casualidade, naturalidade, apesar do estilo elegante e classudo de Thomas Mann. Tive vontade de chorar apenas duas vezes; mas isso pelo fato ao qual a narrativa se reportava, não por conta da narrativa, que alias foi o que me impediu de chorar e não aceitar aqueles fatos como “fatalidade” – com o perdão da redundância / trocadilho.

Acontece que agora estou lendo O Encontro Marcado, de Fernando Sabino. E esse é um encontro que estava marcado há anos: desde criança freqüento o sebo do Geraldo com minha mãe. Adorava – como adoro até hoje – me perder no mar de livros. Quantas histórias por ler! Quantas eu nunca chegaria a ler? Quantas a minha imaginação nunca poderia supor? Isso me fascina, essa riqueza da literatura. Pois foi lá no Geraldo que vi pela primeira vez o livro de Sabino. Estava com 12 anos, mais ou menos, e só lia literatura infanto-juvenil. O titulo chamou-me muita atenção e me pareceu que a obra deveria ser gostosa de ler, leve e ao menos tempo profunda, com um quê de amargura e impotência diante das coisas do “destino” – se é que ele existe... mas como é poético pensar em destino! A capa é rosa, melancólica. E a vontade de ler O Encontro Marcado sempre clamava dentro de mim a cada vez que fitava o livro, sempre naquele mesmo armário, no mesmo canto. Incrível! Um dia desses, nem lembrava mais desse livro, estava lá, vendo o que meus parcos recursos me permitiriam adquirir, e o encontrei. Fiquei emocionada. E agora resolvi lê-lo, finalmente, o nosso encontro marcado que estava para algum dia do futuro, sem data alguma.

Não quero escrever tanto aqui sobre o livro em si, até por que nem terminei de lê-lo ainda. O importante é que ás primeiras páginas pensei “É, é bom, mas nem tanto... que pena! Tantos anos de espera!”, mas agora já arrisco dizer que é muito, muito bom, suplanta as minhas expectativas. Fala do tempo também, mas de forma mais pessoal e angustiada (não,não sei se de forma mais angustiada; talvez igual, e não mais) do que A Montanha Mágica. A escrita de Fernando Sabino é crua e um tanto quanto objetiva, mas corta fundo. Fala alto aos meus sentimentos, às minhas inquietações... lembro sempre de uma música – inclusive esses dias citei-a numa conversa – de Renato Russo, é O mundo anda tão complicado, em que ele diz “quero ouvir uma música que fale da minha situação”. E não é assim também com a literatura? Um bom livro fala conosco, comunica sentidos – como ouvi outro dia, e também lembrei hoje, a arte é comunicação de sentidos, em amplo sentido rsrs. A angústia; a sensação de não ter escolhido, mas sim de ter sido escolhido pelo tal “destino”; a inexorabilidade do tempo; o efêmero da existência... Cronos, faz filhos com Gaia e depois os come! Isso é o terror! Isso me arrepia, mas muitas vezes acalma...

Termino o texto por aqui. Tinha muito mais a dizer. Agora sinto de novo como se as palavras “amputassem” os pensamentos meus. Termino o texto sem conclusão – e daí? Não quero concluir nada! Não quero uma vidinha equibilibrada, com tudo bem certinho... Quero me jogar no mundo! Vida é pra gastar!

Outro dia continuo...

SOLIDARIEDADE AO POVO PALESTINO JÁ!!!

Desde o ultimo dia 27 de dezembro o Estado de Israel vem impondo uma criminosa e covarde ofensiva militar à população civil da Faixa de Gaza sob o pretexto de combater o grupo palestino Hamas. Pesados bombardeios seguidos de uma ocupação por terra já mataram, em apenas doze dias, cerca de 800 palestinos e produziram um grande número de feridos, civis em sua imensa maioria, incluindo uma enorme quantidade de crianças.
A cada hora, o saldo da carnificina vai aumentando! O exército israelense não dá sinais de trégua e segue despejando indiscriminadamente seu dilúvio de balas e bombas sobre uma região que possui uma das maiores densidades populacionais do mundo. Escolas, uma hospital infantil, uma universidade, casas, prédios, bairros residenciais e civis indefesos são os alvos “militares” preferenciais da ofensiva. Faltam remédios, não há energia elétrica, os hospitais não têm como comportar o número crescente de mutilados e feridos, que vão morrendo aos montes, sem possibilidade de atendimento.
Diante de tamanha injustiça e covardia, um grito de indignação e solidariedade vem se multiplicando e rompendo todas as fronteiras para somar-se aos gritos de dor e desespero do povo palestino. Nós acolhemos estes gritos e dizemos: Esta dor também nos dói! Por isso queremos convidar a todas e todos a participarem de uma reunião para discutir manifestações e atos de solidariedade ao povo palestino e contra o terrorismo de Estado dos chacais da política e da guerra.

Data: 08/01 (quinta-feira)
Local: Pátio do curso de História da UFC
Hora: 18:30

PELO FIM DO MASSACRE NA PALESTINA!!
PELA UNIÃO DOS POVOS E CONTRA O TERRORISMO DE ESTADO!!
POR UMA TERRA SEM AMOS!!
VIVA PALESTINA LIVRE!!

ORGANIZAÇÃO RESISTÊNCIA LIBERTÁRIA!

Solidariedade ao povo palestino!

"Nossos gritos podem deter alguma bomba? Nossa palavra salva a vida de alguma criança palestina? Achamos que sim. Talvez não detenhamos uma bomba, nem nossa palavra se transforme em escudo blindado", mas, possivelmente, consiga unir-se a outras e "se torne murmúrio, em seguida voz forte e depois grito que se escute em Gaza. Todos e todas nós, zapatistas do EZLN, sabemos quanto é importante ouvir palavras de alento em meio à destruição e à morte".
(Sub-comandante Marcos - EZLN)

A INVESTIDA DE ISRAEL CONTRA GAZA, "CLÁSSICA" GUERRA DE CONQUISTA: MARCOS. Hermann Bellinhausen, La Jornada, 05/01/2009.

San Cristóbal de las Casas, Chiapas, 04 de janeiro. Para os zapatistas, em Gaza há "um exército profissional assassinando uma população indefesa", disse hoje o Subcomandante Marcos ao dedicar uma intervenção não-programada à nova guerra em curso.
O penúltimo dia do Festival Mundial da Digna Raiva foi marcado pela indignação diante do ataque contra a Palestina e a repressão em Oaxaca, que horas antes havia se repetido com a prisão de 20 pessoas que participavam de um protesto pacífico contra a invasão em Gaza diante do consulado dos Estados Unidos.
Nas primeiras horas deste domingo, centenas de participantes do festival, que se realiza nas proximidades de San Cristóbal, para além dos subúrbios indígenas de La Hormiga, foram até o centro para protestar contra a invasão e pedir a libertação dos presos da APPO (Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca). Pelo menos, esta última demanda foi conseguida ontem à noite. A inusitada marcha com tochas, que saiu da Universidade da Terra, fez com que os hotéis fechassem as portas e alguns moradores lembrassem da primeira madrugada de 1994 [dia do levante do EZLN].
Na parte da tarde, Marcos diria: "Não muito longe daqui, num lugar chamado Gaza, um exercito fortemente armado e treinado, o do governo de Israel, continua seu avanço de morte e destruição". Uma guerra "clássica" de conquista. "Primeiro um pesado bombardeio para destruir os pontos nevrálgicos e abrandar as fortificações da resistência". Lembrou que na sexta-feira, "no mesmo dia em que nossa palavra se referiu à violência", Condoleeza Rice declarava que o que acontece em Gaza era "culpa dos palestinos, por sua natureza violenta".
Afirmou que continua "o férreo controle sobre o que se ouve e se vê" no mundo, "externo ao teatro de operações", e há "fogo intenso de artilharia sobre a infantaria inimiga para proteger o avanço das tropas. Depois o cerco e o sítio à guarnição, e o assalto que conquiste a posição aniquilando o inimigo".
De acordo com as fotos das agências, acrescentou, "os ‘pontos nevrálgicos’ destruídos pela aviação israelense são casas de moradia, barracos e prédios civis". Então, "pensamos que ou os artilheiros são ruins de pontaria ou tais pontos não existem. Não temos a honra de conhecer a Palestina, mas supomos que nessas casas, barracos e prédios mora ou morava gente, homens, mulheres, crianças e anciãos, e não soldados".
Talvez, opinou, "para o governo de Israel esses homens, mulheres, crianças e anciãos são soldados inimigos, e os barracos, casas e prédios onde moram são quartéis que devem ser destruídos. Com certeza, os disparos de artilharia que nesta madrugada caiam sobre Gaza eram para proteger desses homens, mulheres, crianças e anciãos o avanço da infantaria de Israel e o destacamento inimigo que querem debilitar nada mais é a não ser a população palestina que vive aí e que o assalto procurará aniquilar".
Com voz quebrada expressou: "Nossos gritos podem deter alguma bomba? Nossa palavra salva a vida de alguma criança palestina? Achamos que sim. Talvez não detenhamos uma bomba, nem nossa palavra se transforme em escudo blindado", mas, possivelmente, consiga unir-se a outras e "se torne murmúrio, em seguida voz forte e depois grito que se escute em Gaza. Todos e todas nós, zapatistas do EZLN, sabemos quanto é importante ouvir palavras de alento em meio à destruição e à morte".
Quanto ao resto, segundo a análise de Marcos, "o governo de Israel declarará que infligiu um severo golpe ao terrorismo, ocultará do seu povo a magnitude do massacre e os produtores de armamentos terão tido um breve fôlego econômico".
O povo palestino vai resistir, sobreviver e continuar lutando, confiou o porta-voz zapatista. "Talvez, um menino ou uma menina de Gaza sobrevivam e cresçam, e com eles cresçam a coragem, a indignação, a raiva; talvez se tornem soldados ou milicianos, talvez enfrentem Israel, e, então, lá em cima escreverão sobre a natureza violenta dos palestinos, farão declarações condenando esta violência e se voltará a discutir sobre se é sionismo ou anti-semitismo. Ninguém perguntará quem semeou o que colhe".

Uma boa crítica à crítica literária

Ano novo, vida nova! Huhuhauahuhauhauhau
Até pensei em escrever alguma coisa aqui sobre isso, sobre os arrepios que os fogos da Praia de Iracema me causaram nos primeiros minutos do ano, sobre a esperança embasbacada e passiva que estava estampada no rosto de cada um dos seres ali presentes – inclusive no meu, devo admitir; esses ardis / placebos de divisão do tempo nos fazem mesmo acreditar!

Mas não. Deixarei minhas reflexões sobre o tempo para o momento em que terminar a leitura de A Montanha Mágica, de Thomas Mann.

Agora, o que quero postar aqui é o prefácio de Doris Lessing aO Carnê Dourado, boa novela desta autora britânica. Sinceramente, acho que apesar de a obra valer a pena, o prefácio é o que é realmente impagável! É raivoso, eloqüente e lúcido. Sentir meu corpo tremer de tanta concordância com o que Lessing exprime ali! A autora ultrapassa a simples crítica à crítica literária e faz críticas ao sistema de ensino e à nossa sociedade hierárquica e castradora.

Trago, então, o prefácio e renovo a promessa de uma resenha sobre este livro – resenha que tentarei fazer de forma a não trair minha posição de assentimento às opiniões da autora acerca da crítica literária.

Prefácio a "O carnê dourado"

Essa triste altercação entre autores e críticos, dramaturgos e críticos, já se tornou tão habitual para o público, que todos pensam que se trata de crianças discutindo e fazem o seguinte comentário: “Lá vão os queridinhos começar a briga”. Ou: “Vocês, escritores, são sempre elogiados ou, quando não o são, recebem um bocado de atenção; por que, então, se mostram sempre tão magoados?” E o público está certíssimo. Por motivos que não vou citar aqui, antigas e valiosas experiências da minha vida de escritora me deram um sentido de percepção quanto a críticos e comentadores, o qual, em relação a meu romance O carnê dourado eu perdi; eu achava que, na maioria, as críticas eram imbecis demais para serem verdadeiras. Ao recuperar meu equilíbrio, compreendi o problema. Acontece que os escritores consideram os críticos seu alter ego, aquele outro eu mais inteligente do que si próprio, que compreendeu o que a pessoa está procurando, e que julga a pessoa apenas considerando se ela realmente atingiu o objetivo a que se propunha. Jamais conheci um escritor que, ao finalmente defrontar-se com esse raro ser – um verdadeiro crítico –, não perdesse toda a paranóia e se tornasse agradecidamente atento: ele descobriu o que julga precisar. Porém o que ele, o escritor, pede, é impossível. Por que ele deveria crer nesse ser extraordinário, o crítico perfeito (que às vezes existe), por que deveria haver outra pessoa que compreendesse o que ele está procurando fazer? Afinal de contas, só existe uma pessoa tecendo esse casulo em especial, apenas uma pessoa cuja proposição é tecê-lo.
Não é possível aos críticos e comentadores fornecer o que eles se propõem a fornecer, e que os outros tão ridícula e infantilmente desejam.
Isso porque os críticos não foram educados para tal; seu treinamento é em direção oposta.
Começa quando a criança tem apenas cinco ou seis anos, e chega ao colégio. Começa com notas, recompensas, “lugares”, “estrelinhas”. Essa mentalidade de cavalo de corrida, a maneira de pensar do vencedor e do perdedor, conduz a coisas como “O escritor X está, não está, alguns passos à frente do escritor Y. O escritor Y passou para trás. Em seu último livro, o escritor Z demonstrou ser melhor do que o escritor A”. Desde o começo a criança é treinada para pensar dessa forma, sempre em termos de comparação, de sucesso e de fracasso. É um sistema de eliminação: o mais fraco é desestimulado e cai fora; é um sistema destinado a produzir alguns vencedores que estão sempre competindo entre si. Acredito – embora este não seja o lugar de desenvolver minha tese – que as aptidões que toda criança tem, independentemente do seu QI oficial, poderiam permanecer com ela a vida inteira, para enriquecê-la e a outras pessoas, se tais aptidões não fossem consideradas mercadorias, com um determinado valor no jogo do sucesso.
Outra coisa que se ensina às crianças de saída é desconfiar do próprio julgamento. Ensina-se as crianças a serem submissas à autoridade, a buscar opiniões e decisões das outras pessoas e a acatá-las e segui-las.
Como na esfera política, ensina-se à criança que ela é livre, é democrata, dispõe de vontade própria e mente livre, mora num país livre e pode tomar suas próprias decisões. Ao mesmo tempo, ela é prisioneira das suposições e dos dogmas de sua época, que ela não questiona, porque nunca lhe disseram que eles existem. Quando um jovem chega à idade em que precisa escolher (continuamos a aceitar sem discutir que a escolha é inevitável) entre as artes e as ciências, costuma escolher as artes porque julga que nesse campo há humanidade, liberdade e opção. Ele não sabe que já se amoldou a um sistema, não sabe que a própria escolha é resultado de uma falsa dicotomia enraizada no coração de nossa cultura. Os que o percebem e que não querem submeter-se a mais padrões tendem a ir embora, num esforço meio inconsciente e instintivo de encontrar trabalho onde eles, como pessoas, não se sintam divididas. Com todas as nossas instituições, que vão desde a polícia até a academia, desde a medicina até a política, prestamos pouca atenção às pessoas que se afastam – um processo de eliminação que prossegue sem cessar e que exclui, muito cedo, os que são originais e reformadores, deixando os atraídos para uma coisa porque é isso o que eles já são. Um jovem policial abandona a polícia porque afirma não gostar do que tem de fazer. Um jovem professor deixa o ensino e abandona o próprio idealismo. Esse mecanismo social ocorre quase sem ser percebido, mas é uma força poderosa na manutenção rígida e opressiva de nossas instituições.
As crianças que passaram anos dentro do sistema de treinamento tornam-se críticos de jornais e revistas, e não são capazes de dar o que o autor, o artista, tão tolamente procura: julgamento imaginativo e original. O que eles sabem fazer – e o fazem muito bem – é dizer ao escritor como o livro ou a peça está de acordo com os atuais padrões de sentimentos e idéias – o clima de opinião. Eles são como tornassol. São anemoscópios – inestimáveis. São os barômetros mais sensíveis da opinião pública. Nesse campo percebem-se mudanças de humor e opinião mais depressa do que em qualquer outro lugar, exceto talvez na política, porque se trata de pessoas cuja educação foi dirigida apenas para isso: procurar fora de si mesmos por suas opiniões, adaptar-se a imagens de autoridade, à “opinião recebida” – expressão maravilhosamente reveladora.
Talvez não exista outra maneira de educar as pessoas. Possivelmente, mas não acredito. Nesse ínterim seria útil pelo menos descrever adequadamente as coisas, chamá-las por seus nomes corretos. Idealmente, o que se deveria dizer a toda criança, repetidamente, durante toda a vida escolar, é algo mais ou menos assim:
“Você está no processo de ser doutrinado. Ainda não criamos um sistema de educação que não seja um sistema de doutrinação. Lamentamos, mas estamos fazendo o melhor que podemos. O que lhe estão ensinando aqui é um amálgama dos preconceitos atuais e das opções desta nossa cultura. A consulta mais ligeira à História revelará o quanto eles são temporários. Você está sendo ensinado por pessoas que conseguiram acomodar-se a um regime de pensamentos transmitidos por seus predecessores. É um sistema autoperpetuador. Os que, dentre vocês, são mais vigorosos e individuais do que os demais serão incentivados a ir embora e a encontrar maneiras de se educar, educando seu próprio julgamento. Os que ficarem devem sempre lembrar, sempre, em todas as ocasiões, que estão sendo amoldados para se enquadrar nas estreitas e específicas necessidades desta determinada sociedade”.
Como qualquer outro escritor, recebo sempre cartas de jovens que vão escrever dissertações e ensaios sobre meus livros em vários países, especialmente nos Estados Unidos. Todos dizem: “Peço-lhe o favor de me dar uma lista dos artigos relativos aos seus trabalhos, dos críticos que já escreveram sobre você, assim como das autoridades que já a citaram”. Também solicitam mil minúcias de total irrelevância, mas que lhes ensinaram a julgar importantes, e tanta coisa chega a formar um dossiê, como o de um departamento de imigração.
Respondo a essas solicitações da seguinte maneira: “Prezado estudante: Você está louco. Por que perder meses e anos escrevendo milhares de palavras a respeito de um livro, ou mesmo de um escritor, quando há centenas de livros esperando para serem lidos? Você não compreende que é vítima de um sistema pernicioso? E se foi você mesmo que escolheu minha obra como tema, e precisa escrever uma redação – e, creia-me, agradeço muito que o que escrevi tenha sido julgado útil por você –, então por que não lê o que escrevi e decide por si mesmo o que acha, cotejando-o com sua própria vida e experiências? Não tome conhecimento dos Professores Brancos e Negros”.
“Prezada escritora”, respondem. “Acontece que preciso saber o que dizem as autoridades, porque, se eu não as citar, meu professor não me dará nota.”
Esse é um sistema internacional, absolutamente idêntico nos montes Urais, na Iugoslávia, em Minnesota e em Manchester.
A questão é que estamos tão habituados a ele que já nem percebemos como é pernicioso.
Eu não estou acostumada a ele, porque saí do colégio aos catorze anos. Houve época em que lamentei isso, e acreditei haver perdido algo valioso. Hoje sou grata por haver felizmente escapado. Após a publicação do Carnê dourado, resolvi descobrir algo sobre a carpintaria literária, examinar o processo que formava um crítico. Consultei inúmeras provas de colégio e não acreditei no que li; fui ouvinte em aulas que ensinavam literatura, e não pude acreditar no que ouvia.
Você talvez esteja dizendo: Essa é uma reação exagerada e você não tem direito a ela, porque alega jamais haver feito parte do sistema. Acho, porém, que não é exagerada e que a reação de alguém de fora tem valor simplesmente porque é nova e não está predisposta por lealdade a uma determinada educação.
Porém, depois dessa investigação, não tive dificuldades em responder às minhas próprias perguntas: Por que eles são tão provincianos, tão pessoais, tão tacanhos? Por que sempre pulverizam e menosprezam, por que são tão fascinados por detalhes e desinteressados pelo todo? Por que a interpretação que atribuem à palavra crítico é sempre a de apontar falhas? Por que sempre consideram que os autores estão em conflito uns com os outros, ao invés de se complementarem? A resposta é simples: Porque foram treinados pra pensar assim. Aquela pessoa valiosa que compreende o que você está fazendo, o que você objetiva, que pode dar-lhe conselhos e críticas verdadeiros quase sempre é alguém que está fora da engrenagem literária, e até mesmo fora do sistema universitário; pode ser um estudante apenas iniciante e que ainda esteja apaixonado por literatura, ou talvez seja alguém profundo, que leia muito, seguindo o próprio instinto.
Digo aos estudantes que precisam passar um, dois anos escrevendo teses sobre um livro: “Só existe uma forma de ler, que consiste em se estar sempre em bibliotecas e livrarias, escolhendo livros que nos atraiam e lendo apenas esses, pondo-os de lado quando eles entediarem e pulando os trechos arrastados. Nunca, nunca leia nada porque você acha que deve ou porque seja parte de uma tendência ou de um movimento. Lembre-se de que o livro que o chateia quando você tem vinte ou trinta anos lhe abrirá portas quando você estiver com quarenta ou cinquenta anos – e vice-versa. Não leia um livro a não ser que esteja na hora certa. Lembre-se de que, para todos os livros impressos, há igual número que jamais foi impresso, nunca foi escrito. Mesmo hoje, nesta época de reverência compulsória pela palavra escrita, a História – até mesmo a ética social – é ensinada por meio de histórias, e as pessoas que foram condicionadas a pensar apenas em termos do que está escrito – e infelizmente quase todos os produtos de nosso sistema educacional não podem fazer mais do que isso – não percebem o que lhes está diante dos olhos. Por exemplo, a verdadeira história da África continua em poder de narradores negros e homens sábios, historiadores negros e curandeiros: é uma história verbal, ainda a salvo do homem branco e suas incursões predatórias. Em todos os lugares, quando se mantém a mente livre, encontra-se a verdade em palavras não escritas. Portanto, não permita jamais que a página escrita seja o seu senhor. Acima de tudo, você deve saber que o fato de precisar passar um ou dois anos em um livro ou um autor significa que lhe ensinam mal: deveriam ter-lhe ensinado a ler de acordo com sua própria escolha, você deveria estar aprendendo a seguir sua própria escolha, você deveria estar aprendendo a seguir sua própria intuição sobre aquilo de que precisa: é isso o que você deveria estar desenvolvendo, e não a maneira de citar outras pessoas”.
Infelizmente, porém, quase sempre é tarde demais.
Durante certo tempo pareceu que as recentes rebeliões estudantis iam mudar as coisas, como se a impaciência dos jovens com as coisas mortas que lhes ensinam fosse forte o bastante para substituí-las por algo mais novo e útil. Parece, porém, que a revolta terminou. Isso é triste. Durante uma época vibrante nos Estados Unidos, eu recebia cartas com narrativas de como classes de alunos haviam recusado as recomendações de leituras e estavam levando para a sala de aula suas próprias escolhas de leituras, as que eles haviam julgado importantes para suas vidas. As aulas eram impressionantes, às vezes violentas e tempestuosas, excitantes, vibrantes de vida. Evidentemente, isso só ocorreu com os professores solidários e que estavam preparados para apoiar os alunos contra as autoridades – os que estavam preparados para as consequências. Há professores que sabem que a forma pela qual devem lecionar é inadequada e aborrecida; felizmente ainda existem alguns que derrubam o que está errado, mesmo que os próprios estudantes já tenham perdido o entusiasmo.

Entrementes, existe um país onde...

Há quarenta ou cinquenta anos, um crítico fez uma lista particular de escritores e poetas que ele pessoalmente considerava os únicos que prestavam na literatura, e descartou todos os demais. Ele defendeu essa lista amplamente em publicações, pois a Lista instantaneamente virou assunto de debate. Milhões de palavras foram escritas pró e contra – escolas e seitas, favoráveis e contrárias, vieram a existir. A discussão, após tantos anos, prossegue... e ninguém julga esse estado de coisas lamentável nem ridículo...

Daí, existem livros de crítica de imensa complexidade e erudição que tratam, quase sempre em segunda ou terceira mão, de trabalhos originais – romances, peças, contos. As pessoas que escrevem esses livros formam uma camada nas universidades do mundo inteiro: são um fenômeno internacional, o ápice dos intelectuais. Passam suas vidas criticando, e criticando as críticas dos outros. Eles pelo menos consideram essa atividade mais importante do que o trabalho original. É possível a alunos de literatura passarem mais tempo lendo as críticas e críticas de críticas do que lendo poesia, romances, biografias, contos. Muita gente considera normal esse estado de coisas, e não lamentável nem ridículo...

Daí, recentemente li um ensaio sobre Antônio e Cleópatra escrito por um rapaz quase merecedor do conceito A. Era muito original e denotava um grande entusiasmo com respeito à peça, o sentimento que todo verdadeiro ensino de literatura objetiva criar. O ensaio foi devolvido pelo professor com a observação: “Não posso dar nota ao ensaio porque você não citou nenhuma autoridade”. Poucos professores considerariam essa atitude lamentável e ridícula...

Daí, pessoas que se consideram instruídas, e realmente superiores e mais refinadas do que as pessoas que não lêem, aproximam-se de um autor e o congratulam por haver conseguido uma crítica favorável em algum lugar, mas não acham necessário ler o livro em questão, nem sequer percebem que o que lhes interessa é o sucesso...

Daí, quando sai um livro sobre certo assunto, digamos contemplação dos astros, instantaneamente um punhado de faculdades, associações e programas de televisão escrevem ao autor convidando-o para falar sobre contemplação dos astros. A última coisa que lhes ocorre fazer é ler o livro. Esse procedimento é considerado normalíssimo, sem nada de ridículo...

Daí, um rapaz ou uma moça, crítico ou crítica de jornal ou revista, que leu de um autor apenas o livro que está à sua frente, escreve de forma benevolente, ou dá a impressão de estar entediado com a obra, ou de estar pensando na nota que daria ao livro do autor que está sendo criticado – que talvez tenha escrito quinze livros e venha escrevendo há vinte ou trinta anos –, e dá ao escritor instruções sobre como e o que escrever em seguida. Ninguém acha isso absurdo, muito menos o jovem crítico, que foi ensinado a ser benevolente e a detalhar suas acusações durante anos, de Shakespeare para baixo.

Daí, um professor de arqueologia pode escrever, sobre uma tribo sul-americana que possui grande conhecimento de plantas, de medicina e de métodos psicológicos, o seguinte: “O surpreendente é que esse povo não tenha linguagem escrita...” E ninguém o julga absurdo.

Daí, na ocasião de um centenário de Shelley, na mesma semana e em três revistas literárias, três rapazes, de instrução idêntica e de idênticas universidades, podem escrever artigos críticos sobre Shelley, censurando-o com o elogio mais pífio possível, e em tom idêntico, como se estivessem fazendo um grande favor a Shelley ao citá-lo, e ninguém pensa que uma coisa dessas demonstra que existe algo terrivelmente errado em nosso sistema literário.

E naturalmente esses incidentes reinstalam as perguntas sobre o que percebem as pessoas ao ler um livro, e por que uma pessoa percebe um padrão e nada absolutamente de outro, e como é estranho ter – como autora – uma visão tão clara de um livro visto de maneiras tão diversas pelos leitores.

Desse tipo de pensamento surgiu uma nova conclusão: não é apenas infantil um autor querer que os leitores vejam as coisas como ele as vê, que compreendam a estrutura e o objetivo do romance da mesma forma que ele – o fato de o autor desejar isso significa que ele não compreendeu um ponto fundamental. Qual seja, que livro é vivo e potente e fecundo e capaz de promover idéias e debates apenas quando seu plano e estrutura e objetivo não são compreendidos, porque o momento em que sua estrutura, seu plano e seu objetivo são percebidos, é também o momento em que não existe mais nada a ser tirado dele.

E quando o padrão e a estrutura de um livro são tão óbvios ao leitor quanto o são para o autor, talvez tenha chegado a hora de jogar o livro de lado e começar de novo outra coisa nova.

Doris Lessing, junho de 1971