Fonte: http://gafeminista.blogspot.com/2009/04/wendo-entrevista-com-trude-menrath.html
[WenDo] Entrevista com Trude Menrath
Fonte: http://gafeminista.blogspot.com/2009/04/wendo-entrevista-com-trude-menrath.html
O pai do balé cearense vive a densa leveza do espetáculo da vida
O artista nasceu a partir das viagens com a Companhia Marquise Branca, mas há anos era engendrado – teatrinho em casa com os amigos, improvisado com os lençóis da avó, peças no ginásio, vivência intensa da atmosfera cultural do centro de Fortaleza. Despontou mesmo quando resolveu enfrentar os mares bravios da terra natal rumo ao centro cultural da época, a gloriosa e ebulitiva Rio de Janeiro.
Os olhos azuis como o mar que se lhe afigurava na antiga ponte da Praia de Iracema – olhos plenos de sonhos e persistência – devem ter antevisto as adversidades que estavam por vir, mas provavelmente não adivinharam o sucesso; talvez tenham apenas o desejado ardentemente. Diante de tantas dificuldades, a beleza do teatro revista o interpelava com força e se mostrava convincente. “Era o meu destino”. Hugo estava em casa. Se o mundo lá fora era cinza – noites nas praças ou nos bondes, amparado pelo colo da amiga Suzy –, a convivência com aqueles que viriam a ser grandes bailarinos era cor, glamour, “a glória”.
O pai do balé cearense viu, como bom pai que acompanha a cria, as mudanças pelas quais essa arte passou: das primeiras filhas que não aprendiam “direitinho”, ao desabrochar de jóias lapidadas por ele, passando pelas disputas internas objetivando a graça do público. Hugo Bianchi acompanhou também a efervescência da década de 70 – quando os recursos não faltavam –, os espetáculos grandiosos tratando de temas universais e regionais e os momentos seguintes de dificuldades financeiras.
O bailarino é o testemunho vivo de uma história – da dança, do nacionalismo (o Serviço Nacional de Teatro tentava criar uma dança brasileira, com a bailarina Eros Volúsia), da tentativa de afirmação de uma cultura genuinamente cearense (muitos de seus espetáculos trataram de temáticas reconhecidamente atribuídas ao Ceará), do cenário cultural de toda uma época que o criou e foi por ele também criada. A narrativa de Hugo Bianchi percorre desde a época em que o balé clássico era moda entre a elite fortalezense ao presente, em que o balé se reinventa, incrementa-se e convive com a dança contemporânea.
O bailarino dançou com densa leveza o balé repertório da vida, chegando este ano ao 83° ato. Do alto da longa trajetória, desfia os caminhos de sua existência cheia de emoções. As reminiscências, sempre acompanhadas de muitos gestos, denotam uma relação com o corpo bastante expressiva, própria da arte que se transformou em sua vida. Um homem sereno e gentil, mas de uma postura ereta, rígida. Lúcido e sem falsa modéstia, entende-se como vencedor, pioneiro da dança no Ceará.“Sensível, um verdadeiro artista”, como foi definido por tantos. Alguém que aceitou a dor e a delícia de viver da arte e para a arte. Vaidoso, é com gosto indescritível que relembra a beleza do corpo de outrora. Aliás, a idéia do belo é imprescindível em seu conceito de arte: é o sublime, o não-cotidiano, as histórias grandiosas que povoam seu imaginário acerca do balé. A arte é para fazer sentir, “passar emoção”. Os movimentos leves, flutuantes do balé clássico, são a concretização dos sonhos.
A mulher que veio para incomodar e a perspectiva radicalmente histórica de que “o mundo pode dobrar uma esquina”
Livros, gatos em miniatura, rádios antigos de madeira, pratos de porcelana enfeitando as paredes. O apartamento modesto, aconchegante e colorido era um texto a encher os olhos e a antecipar muito de nossa entrevistada, a professora e historiadora Adelaide Gonçalves. Sua presença forte e elegante, cheia de um estilo próprio, impregna aquele lugar e aguça os nossos sentidos; a vida à flor da pele, intensa e visceral, como me parece tudo relativo a esta mulher.
Ela é toda eloqüente: gestos largos, olhar incisivo, cores, pulseiras, cigarros fumados ou simplesmente retidos entre os dedos. Postura pensante, imaginativa, porém respostas rápidas, na ponta da língua. Argúcia. As palavras fluem como um rio que sabe muito bem aonde ir, de forma um tanto cartesiana. Quem é ela? Uma mulher de muitas faces, tal qual José Martí? Creio que sim. Ela é ela e suas circunstâncias, parafraseando o poeta.
A menina nasceu em Tauá, no interior do Ceará, e aos cinco anos aprendeu a ler, com um tio. Estudou em colégio de freira, onde lhe ensinaram a não agredir o Vernáculo – difícil era saber quem era esse senhor! A cidade era a escola e as responsabilidades que advinham dali. Mas o campo... Ah! O campo era a expressão profunda de uma infância feliz: moagem de cana, farinhada, milho, cheiros, fartura, festas de santos, a avó Mimosa.
Cresce a menina. Quase moça, auxiliar da bibliotecária no Ginásio Antônio Araripe, mergulhou em Germinal e sentiu “como se a cabeça estilhaçasse”. Percebeu, com a inteligência e perspicácia que lhe são peculiares, o sentimento do qual Maiakovski também compartilha: “A palavra é um barril de pólvora”. Quando explode, a imaginação voa solta e o mundo nunca mais vai ser o mesmo para quem o vivenciou por esses outros olhos, construídos a milhares de mãos, pois não são somente autor e leitor os envolvidos nesse jogo. Os horizontes se ampliam. O sertão passa a ser o mundo.
Irreverente desde nova? Na medida do possível. Não é fácil imaginar Adelaide Gonçalves fazendo trabalho de catequese nos distritos de Tauá. Mas “há passagens inescapáveis na vida de uma pessoa”. Não destino, como faz questão de frisar. Tanto que passou da mocinha catequista àquela que quer estar ao lado dos pobres da terra. E as lembranças agora são povoadas por “uns padres que não vestem batina, falam em sindicato, são perseguidos pelos poderosos do lugar”.
Adelaide próxima dos 20 anos: Fortaleza, agora não mais só as férias em casa da tia de classe média. A vida, nessa época, era eterna descoberta, desencadear de acontecimentos impactantes. Abalaram-na profundamente os vários Severinos, que morrem “de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia”. As greves do ABC faziam o peito vibrar. O Socialismo parecia cada vez mais próximo. Cuba emocionava e motivava. Por um governo dos trabalhadores, a professora de História ingressa no PT, onde atuou por mais de 20 anos, ao fim dos quais concluiu que “o partido era partido” e a burocratização já havia tomado conta de tudo há bastante tempo.
As palavras – de novo o barril de pólvora! – e a vivência no Pirambu detonam as revoluções interiores, as que pegam na veia, são pra valer. As crianças tinham os cotovelos deformados por bichos-de-pé. Era a miséria urbana. Naquele momento, o que mais coube foi Gorki – “Estou falando de homens que um dia foram homens” – e a vontade dilacerante e pungente de fazer alguma coisa. Estava ganha para o lado esquerdo do mundo. Constrói uma vida em que a questão social é vista como primordial e com um olho sensível, “sin perder la ternura jamás”.
Há também a face da pesquisadora que ousa atender ao chamado de seus objetos de pesquisa, o jornalismo abusado dos trabalhadores, “sem compromisso com o bom vernáculo”, mas apenas com o novo devir – a aurora de um mundo livre e justo. Na cultura proletária, encantam-lhe o teatro social, as greves – “a coreografia das greves” –, os hinos, o barulho de um piquete, os cortejos de 1º de maio. O coração floresce ao pensar nas possibilidades que a História reserva.Com que tremenda lucidez esta mulher reafirma sua crença na necessidade da Revolução e no potencial da América Latina em construir uma nova ordem social! Contra os consensos fabricados em escala mundial, com tanta força introjetados em nós, Adelaide apresenta a perspectiva radicalmente histórica de que “o mundo pode dobrar uma esquina”. Ela concretiza a audácia de sonhar com que a vida seja boa para toda a gente.