O pai do balé cearense vive a densa leveza do espetáculo da vida

Perfil de Hugo Bianchi, escrito para a disciplina de Laboratório de Impresso I.

O foyer do Theatro José de Alencar foi o local escolhido para a entrevista – requinte, atmosfera nobre, um piano, cadeiras de palhinha, janelas imensas descortinando ora a praça José de Alencar interditada, ora a belíssima fachada interna do teatro, com seus vitrais coloridos. Aquelas paredes estão prenhes de recordações para o bailarino, coreógrafo, professor e ator Hugo Bianchi. Se falassem, diriam-nos dos inúmeros ensaios, da gestação de grandiosos espetáculos do “pai” do balé cearense, cuja primeira academia teve sede justamente ali. Quantos instantes, quanto suor? Quantos aplausos? Quantas quedas? Quantas repetições exaustivas de “pliés, relevés, passé, brisé”?
O artista nasceu a partir das viagens com a Companhia Marquise Branca, mas há anos era engendrado – teatrinho em casa com os amigos, improvisado com os lençóis da avó, peças no ginásio, vivência intensa da atmosfera cultural do centro de Fortaleza. Despontou mesmo quando resolveu enfrentar os mares bravios da terra natal rumo ao centro cultural da época, a gloriosa e ebulitiva Rio de Janeiro.
Os olhos azuis como o mar que se lhe afigurava na antiga ponte da Praia de Iracema – olhos plenos de sonhos e persistência – devem ter antevisto as adversidades que estavam por vir, mas provavelmente não adivinharam o sucesso; talvez tenham apenas o desejado ardentemente. Diante de tantas dificuldades, a beleza do teatro revista o interpelava com força e se mostrava convincente. “Era o meu destino”. Hugo estava em casa. Se o mundo lá fora era cinza – noites nas praças ou nos bondes, amparado pelo colo da amiga Suzy –, a convivência com aqueles que viriam a ser grandes bailarinos era cor, glamour, “a glória”.
O pai do balé cearense viu, como bom pai que acompanha a cria, as mudanças pelas quais essa arte passou: das primeiras filhas que não aprendiam “direitinho”, ao desabrochar de jóias lapidadas por ele, passando pelas disputas internas objetivando a graça do público. Hugo Bianchi acompanhou também a efervescência da década de 70 – quando os recursos não faltavam –, os espetáculos grandiosos tratando de temas universais e regionais e os momentos seguintes de dificuldades financeiras.
O bailarino é o testemunho vivo de uma história – da dança, do nacionalismo (o Serviço Nacional de Teatro tentava criar uma dança brasileira, com a bailarina Eros Volúsia), da tentativa de afirmação de uma cultura genuinamente cearense (muitos de seus espetáculos trataram de temáticas reconhecidamente atribuídas ao Ceará), do cenário cultural de toda uma época que o criou e foi por ele também criada. A narrativa de Hugo Bianchi percorre desde a época em que o balé clássico era moda entre a elite fortalezense ao presente, em que o balé se reinventa, incrementa-se e convive com a dança contemporânea.
O bailarino dançou com densa leveza o balé repertório da vida, chegando este ano ao 83° ato. Do alto da longa trajetória, desfia os caminhos de sua existência cheia de emoções. As reminiscências, sempre acompanhadas de muitos gestos, denotam uma relação com o corpo bastante expressiva, própria da arte que se transformou em sua vida. Um homem sereno e gentil, mas de uma postura ereta, rígida. Lúcido e sem falsa modéstia, entende-se como vencedor, pioneiro da dança no Ceará.“Sensível, um verdadeiro artista”, como foi definido por tantos. Alguém que aceitou a dor e a delícia de viver da arte e para a arte. Vaidoso, é com gosto indescritível que relembra a beleza do corpo de outrora. Aliás, a idéia do belo é imprescindível em seu conceito de arte: é o sublime, o não-cotidiano, as histórias grandiosas que povoam seu imaginário acerca do balé. A arte é para fazer sentir, “passar emoção”. Os movimentos leves, flutuantes do balé clássico, são a concretização dos sonhos.

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