Lua nova demais, de Elisa Lucinda

Poema de Elisa Lucinda. Conheci há pouco mais de um mês e ainda posso sentir a revolta brotando em mim, dando sinais ao mundo através das lágrimas que teimavam em escorrer depois da oficina sobre violência sexual. Não gosto de chorar na frente dos outros. Mas o aperto no peito e o sentimento de impotência... Houve uma vez em que vinha no ônibus, já tarde, e um bêbado insistiu em querer bater num garoto de rua. O garoto se protegia como podia, baixava a cabeça e dizia algumas coisas de forma quase imperceptível. Eu me sentia a pior covarde do mundo. Depois o homem foi embora e me limitei a xingá-lo o mais alto que minha garganta permitiu. Aí chorei, chorei. E o pior é que não podia chorar com gosto, como queria; tive de abafar todo o ódio. Nessa hora as palavras do Victor foram instigantes, e não mitigantes: "Deixa. Um dia isso acaba! A gente vai ver, um dia vai acabar. E não tá longe."

Lua nova demais

Dorme tensa a pequena
sozinha como que suspensa no céu
Vira mulher sem saber
sem brinco, sem pulseira, sem anel
sem espelho, sem conselho, laço de cabelo, bambolê
Sem mãe perto,
sem pai certo
sem cama certa,
sem coberta,
vira mulher com medo,
vira mulher sempre cedo.

Menina de enredo triste,
dedo em riste,
contra o que não sabe
quanto ao que ninguém lhe disse.
A malandragem, a molequice
se misturam aos peitinhos novos
furando a roupa de garoto que lhe dão
dentro da qual mestruará
sempre com a mesma calcinha,
sem absorvente, sem escova de dente,
sem pano quente, sem O B.
Tudo é nojo, medo,
misturação de “cadês.”

E a cólica,
a dor de cabeça,
é sempre a mesma merda,
a mesma dor,
de não ter colo,
parque
pracinha,
penteadeira,
pátria.
Ela lua pequenininha
não tem batom, planeta, caneta,
diário, hemisfério,
Sem entender seu mistério,
ela luta até dormir
mas é menina ainda;
chupa o dedo
E tem medo
de ser estuprada
pêlos bêbados mendigos do Aterro
tem medo de ser machucada, medo.
Depois mestrua e muda de medo
o de ser engravidada, emprenhada,
na noite do mesmo Aterro.
Tem medo do pai desse filho ser preso,
tem medo, medo
Ela que nunca pode ser ela direito,
ela que nem ensaiou o jeito com a boneca
vai ter que ser mãe depressa na calçada
ter filho sem pensar, ter filho por azar
ser mãe e vítima
Ter filho pra doer,
pra bater,
pra abandonar.

Se dorme, dorme nada,
é o corpo que se larga, que se rende
ao cansaço da fome, da miséria,
da mágoa deslavada
dorme de boca fechada,
olhos abertos,
vagina trancada.
Ser ela assim na rua
é estar sempre por ser atropelada
pelo pau sem dono
dos outros meninos-homens sofridos,
do louco varrido,
pela polícia mascarada.

Fosse ela cuidada,
tivesse abrigo onde dormir,
caminho onde ir,
roupa lavada, escola, manicure, máquina de costura, bordado,
pintura, teatro, abraço, casaco de lã
podia borralheira
acordar um dia
cidadã.
Sonha quem cante pra ela:
“Se essa Lua, Se essa Lua fosse minha...”
Sonha em ser amada,
ter Natal, filhos felizes,
marido, vestido,
pagode sábado no quintal.

Sonha e acorda mal
porque menina na rua,
é muito nova
é lua pequena demais
é ser só cratera, só buracos,
sem pele, desprotegida, destratada
pela vida crua
É estar sozinha, cheia de perguntas
sem resposta
sempre exposta, pobre lua
É ser menina-mulher com frio
mas sempre nua.

(Poema encomenda,1995)

8 comentários:

  1. Muito bom o poema e o teu post também. Nunca tinha lido uma poesia assim, que retratasse assim a mulher (ou a menina)... fudido!
    Qto ao post, sei como é. Tb já me senti tantas vezes covarde e, na impossibilidade de não poder fazer nada, se chora de raiva, de empatia, de impotencia... sei bem como é.

    ResponderExcluir
  2. A revolta á assim nos deixa com sensação de impotência. Quanto ao poema, talvez tenha sido a mais pertinente descrição do descaso que se tem por nossas meminas-mulheres.


    Obs: Ser cidadã é a parte que não concordo. Mas, e daí isso não muda a situação.

    ResponderExcluir
  3. Garota você é surpreendente. Mas devo admitir que concordo com a Lilian. Impotência e revolta se misturam e quase se completam.

    ResponderExcluir
  4. Olá, eu de novo... Estou lançando-lhe uma sugestão: que tal se criarmos uma rede de blogs. A intenção é romper com esse modo meio indiviadualista de usarmos o mundo virtual. O que acha?

    ResponderExcluir
  5. Legal, compa! Mas infelizmente, no momento, nao estou podendo garantir a minha força... Ta complicado o meu tempo...

    ResponderExcluir
  6. Tudo bem! Mas como diz num conto de Clarice, " o relógio é o tempo".

    ResponderExcluir
  7. Eu estava numa conferencia dos direitos da criança e adolescente aqui na minha cidade, e uma pessoa declamou esse poema... emocionou muita gente... é muito triste a nossa realidade! A gente vai trabalhando como pode pra q um dia isso mude... mas dói saber o qnto q falta!

    vou te seguir! Gostei daqui!

    beijos

    ResponderExcluir
  8. Camila,

    Sou membro da Escola Lucinda de Poesia Viva - Salvador e também chorei quando fiz, junto com Jina Carmen, uma leitura dramática deste poema. Isso aconteceu há um ano na minha cidade natal, Feira de Santana. Tratav-se de um evento no CDL pela "Erradicação do Trabalho Infantil", em que participávamos a convite de nossa colega Sarah, coordenadora da Agência do Sertão, da Cipó Comunicações Interativa, ong parceira da Escola Lucinda.

    Só ontem eu conheci um projeto que existe em Salvador no qual os moradores de rua produzem e vendem o jornal "Aurora de Rua". Acho que vc gostaria de conhecer o jornal. Visite a página da ong, na net.

    Ao escrever para parabenizá-los eu fui buscar o poema para lhes enviar pq me oferecia para apresentá-lo a eles e dei com o seu blog.

    Pequenos gestos, fazem a diferença, embora grandes passos sejam necessários para mudar a realidade do nosso país. Fique certa de que vc fez o seu!

    Um abraço fraterno,

    Vera Passos
    www.verapassos.blogspot.com

    ResponderExcluir