Uma boa crítica à crítica literária

Ano novo, vida nova! Huhuhauahuhauhauhau
Até pensei em escrever alguma coisa aqui sobre isso, sobre os arrepios que os fogos da Praia de Iracema me causaram nos primeiros minutos do ano, sobre a esperança embasbacada e passiva que estava estampada no rosto de cada um dos seres ali presentes – inclusive no meu, devo admitir; esses ardis / placebos de divisão do tempo nos fazem mesmo acreditar!

Mas não. Deixarei minhas reflexões sobre o tempo para o momento em que terminar a leitura de A Montanha Mágica, de Thomas Mann.

Agora, o que quero postar aqui é o prefácio de Doris Lessing aO Carnê Dourado, boa novela desta autora britânica. Sinceramente, acho que apesar de a obra valer a pena, o prefácio é o que é realmente impagável! É raivoso, eloqüente e lúcido. Sentir meu corpo tremer de tanta concordância com o que Lessing exprime ali! A autora ultrapassa a simples crítica à crítica literária e faz críticas ao sistema de ensino e à nossa sociedade hierárquica e castradora.

Trago, então, o prefácio e renovo a promessa de uma resenha sobre este livro – resenha que tentarei fazer de forma a não trair minha posição de assentimento às opiniões da autora acerca da crítica literária.

Prefácio a "O carnê dourado"

Essa triste altercação entre autores e críticos, dramaturgos e críticos, já se tornou tão habitual para o público, que todos pensam que se trata de crianças discutindo e fazem o seguinte comentário: “Lá vão os queridinhos começar a briga”. Ou: “Vocês, escritores, são sempre elogiados ou, quando não o são, recebem um bocado de atenção; por que, então, se mostram sempre tão magoados?” E o público está certíssimo. Por motivos que não vou citar aqui, antigas e valiosas experiências da minha vida de escritora me deram um sentido de percepção quanto a críticos e comentadores, o qual, em relação a meu romance O carnê dourado eu perdi; eu achava que, na maioria, as críticas eram imbecis demais para serem verdadeiras. Ao recuperar meu equilíbrio, compreendi o problema. Acontece que os escritores consideram os críticos seu alter ego, aquele outro eu mais inteligente do que si próprio, que compreendeu o que a pessoa está procurando, e que julga a pessoa apenas considerando se ela realmente atingiu o objetivo a que se propunha. Jamais conheci um escritor que, ao finalmente defrontar-se com esse raro ser – um verdadeiro crítico –, não perdesse toda a paranóia e se tornasse agradecidamente atento: ele descobriu o que julga precisar. Porém o que ele, o escritor, pede, é impossível. Por que ele deveria crer nesse ser extraordinário, o crítico perfeito (que às vezes existe), por que deveria haver outra pessoa que compreendesse o que ele está procurando fazer? Afinal de contas, só existe uma pessoa tecendo esse casulo em especial, apenas uma pessoa cuja proposição é tecê-lo.
Não é possível aos críticos e comentadores fornecer o que eles se propõem a fornecer, e que os outros tão ridícula e infantilmente desejam.
Isso porque os críticos não foram educados para tal; seu treinamento é em direção oposta.
Começa quando a criança tem apenas cinco ou seis anos, e chega ao colégio. Começa com notas, recompensas, “lugares”, “estrelinhas”. Essa mentalidade de cavalo de corrida, a maneira de pensar do vencedor e do perdedor, conduz a coisas como “O escritor X está, não está, alguns passos à frente do escritor Y. O escritor Y passou para trás. Em seu último livro, o escritor Z demonstrou ser melhor do que o escritor A”. Desde o começo a criança é treinada para pensar dessa forma, sempre em termos de comparação, de sucesso e de fracasso. É um sistema de eliminação: o mais fraco é desestimulado e cai fora; é um sistema destinado a produzir alguns vencedores que estão sempre competindo entre si. Acredito – embora este não seja o lugar de desenvolver minha tese – que as aptidões que toda criança tem, independentemente do seu QI oficial, poderiam permanecer com ela a vida inteira, para enriquecê-la e a outras pessoas, se tais aptidões não fossem consideradas mercadorias, com um determinado valor no jogo do sucesso.
Outra coisa que se ensina às crianças de saída é desconfiar do próprio julgamento. Ensina-se as crianças a serem submissas à autoridade, a buscar opiniões e decisões das outras pessoas e a acatá-las e segui-las.
Como na esfera política, ensina-se à criança que ela é livre, é democrata, dispõe de vontade própria e mente livre, mora num país livre e pode tomar suas próprias decisões. Ao mesmo tempo, ela é prisioneira das suposições e dos dogmas de sua época, que ela não questiona, porque nunca lhe disseram que eles existem. Quando um jovem chega à idade em que precisa escolher (continuamos a aceitar sem discutir que a escolha é inevitável) entre as artes e as ciências, costuma escolher as artes porque julga que nesse campo há humanidade, liberdade e opção. Ele não sabe que já se amoldou a um sistema, não sabe que a própria escolha é resultado de uma falsa dicotomia enraizada no coração de nossa cultura. Os que o percebem e que não querem submeter-se a mais padrões tendem a ir embora, num esforço meio inconsciente e instintivo de encontrar trabalho onde eles, como pessoas, não se sintam divididas. Com todas as nossas instituições, que vão desde a polícia até a academia, desde a medicina até a política, prestamos pouca atenção às pessoas que se afastam – um processo de eliminação que prossegue sem cessar e que exclui, muito cedo, os que são originais e reformadores, deixando os atraídos para uma coisa porque é isso o que eles já são. Um jovem policial abandona a polícia porque afirma não gostar do que tem de fazer. Um jovem professor deixa o ensino e abandona o próprio idealismo. Esse mecanismo social ocorre quase sem ser percebido, mas é uma força poderosa na manutenção rígida e opressiva de nossas instituições.
As crianças que passaram anos dentro do sistema de treinamento tornam-se críticos de jornais e revistas, e não são capazes de dar o que o autor, o artista, tão tolamente procura: julgamento imaginativo e original. O que eles sabem fazer – e o fazem muito bem – é dizer ao escritor como o livro ou a peça está de acordo com os atuais padrões de sentimentos e idéias – o clima de opinião. Eles são como tornassol. São anemoscópios – inestimáveis. São os barômetros mais sensíveis da opinião pública. Nesse campo percebem-se mudanças de humor e opinião mais depressa do que em qualquer outro lugar, exceto talvez na política, porque se trata de pessoas cuja educação foi dirigida apenas para isso: procurar fora de si mesmos por suas opiniões, adaptar-se a imagens de autoridade, à “opinião recebida” – expressão maravilhosamente reveladora.
Talvez não exista outra maneira de educar as pessoas. Possivelmente, mas não acredito. Nesse ínterim seria útil pelo menos descrever adequadamente as coisas, chamá-las por seus nomes corretos. Idealmente, o que se deveria dizer a toda criança, repetidamente, durante toda a vida escolar, é algo mais ou menos assim:
“Você está no processo de ser doutrinado. Ainda não criamos um sistema de educação que não seja um sistema de doutrinação. Lamentamos, mas estamos fazendo o melhor que podemos. O que lhe estão ensinando aqui é um amálgama dos preconceitos atuais e das opções desta nossa cultura. A consulta mais ligeira à História revelará o quanto eles são temporários. Você está sendo ensinado por pessoas que conseguiram acomodar-se a um regime de pensamentos transmitidos por seus predecessores. É um sistema autoperpetuador. Os que, dentre vocês, são mais vigorosos e individuais do que os demais serão incentivados a ir embora e a encontrar maneiras de se educar, educando seu próprio julgamento. Os que ficarem devem sempre lembrar, sempre, em todas as ocasiões, que estão sendo amoldados para se enquadrar nas estreitas e específicas necessidades desta determinada sociedade”.
Como qualquer outro escritor, recebo sempre cartas de jovens que vão escrever dissertações e ensaios sobre meus livros em vários países, especialmente nos Estados Unidos. Todos dizem: “Peço-lhe o favor de me dar uma lista dos artigos relativos aos seus trabalhos, dos críticos que já escreveram sobre você, assim como das autoridades que já a citaram”. Também solicitam mil minúcias de total irrelevância, mas que lhes ensinaram a julgar importantes, e tanta coisa chega a formar um dossiê, como o de um departamento de imigração.
Respondo a essas solicitações da seguinte maneira: “Prezado estudante: Você está louco. Por que perder meses e anos escrevendo milhares de palavras a respeito de um livro, ou mesmo de um escritor, quando há centenas de livros esperando para serem lidos? Você não compreende que é vítima de um sistema pernicioso? E se foi você mesmo que escolheu minha obra como tema, e precisa escrever uma redação – e, creia-me, agradeço muito que o que escrevi tenha sido julgado útil por você –, então por que não lê o que escrevi e decide por si mesmo o que acha, cotejando-o com sua própria vida e experiências? Não tome conhecimento dos Professores Brancos e Negros”.
“Prezada escritora”, respondem. “Acontece que preciso saber o que dizem as autoridades, porque, se eu não as citar, meu professor não me dará nota.”
Esse é um sistema internacional, absolutamente idêntico nos montes Urais, na Iugoslávia, em Minnesota e em Manchester.
A questão é que estamos tão habituados a ele que já nem percebemos como é pernicioso.
Eu não estou acostumada a ele, porque saí do colégio aos catorze anos. Houve época em que lamentei isso, e acreditei haver perdido algo valioso. Hoje sou grata por haver felizmente escapado. Após a publicação do Carnê dourado, resolvi descobrir algo sobre a carpintaria literária, examinar o processo que formava um crítico. Consultei inúmeras provas de colégio e não acreditei no que li; fui ouvinte em aulas que ensinavam literatura, e não pude acreditar no que ouvia.
Você talvez esteja dizendo: Essa é uma reação exagerada e você não tem direito a ela, porque alega jamais haver feito parte do sistema. Acho, porém, que não é exagerada e que a reação de alguém de fora tem valor simplesmente porque é nova e não está predisposta por lealdade a uma determinada educação.
Porém, depois dessa investigação, não tive dificuldades em responder às minhas próprias perguntas: Por que eles são tão provincianos, tão pessoais, tão tacanhos? Por que sempre pulverizam e menosprezam, por que são tão fascinados por detalhes e desinteressados pelo todo? Por que a interpretação que atribuem à palavra crítico é sempre a de apontar falhas? Por que sempre consideram que os autores estão em conflito uns com os outros, ao invés de se complementarem? A resposta é simples: Porque foram treinados pra pensar assim. Aquela pessoa valiosa que compreende o que você está fazendo, o que você objetiva, que pode dar-lhe conselhos e críticas verdadeiros quase sempre é alguém que está fora da engrenagem literária, e até mesmo fora do sistema universitário; pode ser um estudante apenas iniciante e que ainda esteja apaixonado por literatura, ou talvez seja alguém profundo, que leia muito, seguindo o próprio instinto.
Digo aos estudantes que precisam passar um, dois anos escrevendo teses sobre um livro: “Só existe uma forma de ler, que consiste em se estar sempre em bibliotecas e livrarias, escolhendo livros que nos atraiam e lendo apenas esses, pondo-os de lado quando eles entediarem e pulando os trechos arrastados. Nunca, nunca leia nada porque você acha que deve ou porque seja parte de uma tendência ou de um movimento. Lembre-se de que o livro que o chateia quando você tem vinte ou trinta anos lhe abrirá portas quando você estiver com quarenta ou cinquenta anos – e vice-versa. Não leia um livro a não ser que esteja na hora certa. Lembre-se de que, para todos os livros impressos, há igual número que jamais foi impresso, nunca foi escrito. Mesmo hoje, nesta época de reverência compulsória pela palavra escrita, a História – até mesmo a ética social – é ensinada por meio de histórias, e as pessoas que foram condicionadas a pensar apenas em termos do que está escrito – e infelizmente quase todos os produtos de nosso sistema educacional não podem fazer mais do que isso – não percebem o que lhes está diante dos olhos. Por exemplo, a verdadeira história da África continua em poder de narradores negros e homens sábios, historiadores negros e curandeiros: é uma história verbal, ainda a salvo do homem branco e suas incursões predatórias. Em todos os lugares, quando se mantém a mente livre, encontra-se a verdade em palavras não escritas. Portanto, não permita jamais que a página escrita seja o seu senhor. Acima de tudo, você deve saber que o fato de precisar passar um ou dois anos em um livro ou um autor significa que lhe ensinam mal: deveriam ter-lhe ensinado a ler de acordo com sua própria escolha, você deveria estar aprendendo a seguir sua própria escolha, você deveria estar aprendendo a seguir sua própria intuição sobre aquilo de que precisa: é isso o que você deveria estar desenvolvendo, e não a maneira de citar outras pessoas”.
Infelizmente, porém, quase sempre é tarde demais.
Durante certo tempo pareceu que as recentes rebeliões estudantis iam mudar as coisas, como se a impaciência dos jovens com as coisas mortas que lhes ensinam fosse forte o bastante para substituí-las por algo mais novo e útil. Parece, porém, que a revolta terminou. Isso é triste. Durante uma época vibrante nos Estados Unidos, eu recebia cartas com narrativas de como classes de alunos haviam recusado as recomendações de leituras e estavam levando para a sala de aula suas próprias escolhas de leituras, as que eles haviam julgado importantes para suas vidas. As aulas eram impressionantes, às vezes violentas e tempestuosas, excitantes, vibrantes de vida. Evidentemente, isso só ocorreu com os professores solidários e que estavam preparados para apoiar os alunos contra as autoridades – os que estavam preparados para as consequências. Há professores que sabem que a forma pela qual devem lecionar é inadequada e aborrecida; felizmente ainda existem alguns que derrubam o que está errado, mesmo que os próprios estudantes já tenham perdido o entusiasmo.

Entrementes, existe um país onde...

Há quarenta ou cinquenta anos, um crítico fez uma lista particular de escritores e poetas que ele pessoalmente considerava os únicos que prestavam na literatura, e descartou todos os demais. Ele defendeu essa lista amplamente em publicações, pois a Lista instantaneamente virou assunto de debate. Milhões de palavras foram escritas pró e contra – escolas e seitas, favoráveis e contrárias, vieram a existir. A discussão, após tantos anos, prossegue... e ninguém julga esse estado de coisas lamentável nem ridículo...

Daí, existem livros de crítica de imensa complexidade e erudição que tratam, quase sempre em segunda ou terceira mão, de trabalhos originais – romances, peças, contos. As pessoas que escrevem esses livros formam uma camada nas universidades do mundo inteiro: são um fenômeno internacional, o ápice dos intelectuais. Passam suas vidas criticando, e criticando as críticas dos outros. Eles pelo menos consideram essa atividade mais importante do que o trabalho original. É possível a alunos de literatura passarem mais tempo lendo as críticas e críticas de críticas do que lendo poesia, romances, biografias, contos. Muita gente considera normal esse estado de coisas, e não lamentável nem ridículo...

Daí, recentemente li um ensaio sobre Antônio e Cleópatra escrito por um rapaz quase merecedor do conceito A. Era muito original e denotava um grande entusiasmo com respeito à peça, o sentimento que todo verdadeiro ensino de literatura objetiva criar. O ensaio foi devolvido pelo professor com a observação: “Não posso dar nota ao ensaio porque você não citou nenhuma autoridade”. Poucos professores considerariam essa atitude lamentável e ridícula...

Daí, pessoas que se consideram instruídas, e realmente superiores e mais refinadas do que as pessoas que não lêem, aproximam-se de um autor e o congratulam por haver conseguido uma crítica favorável em algum lugar, mas não acham necessário ler o livro em questão, nem sequer percebem que o que lhes interessa é o sucesso...

Daí, quando sai um livro sobre certo assunto, digamos contemplação dos astros, instantaneamente um punhado de faculdades, associações e programas de televisão escrevem ao autor convidando-o para falar sobre contemplação dos astros. A última coisa que lhes ocorre fazer é ler o livro. Esse procedimento é considerado normalíssimo, sem nada de ridículo...

Daí, um rapaz ou uma moça, crítico ou crítica de jornal ou revista, que leu de um autor apenas o livro que está à sua frente, escreve de forma benevolente, ou dá a impressão de estar entediado com a obra, ou de estar pensando na nota que daria ao livro do autor que está sendo criticado – que talvez tenha escrito quinze livros e venha escrevendo há vinte ou trinta anos –, e dá ao escritor instruções sobre como e o que escrever em seguida. Ninguém acha isso absurdo, muito menos o jovem crítico, que foi ensinado a ser benevolente e a detalhar suas acusações durante anos, de Shakespeare para baixo.

Daí, um professor de arqueologia pode escrever, sobre uma tribo sul-americana que possui grande conhecimento de plantas, de medicina e de métodos psicológicos, o seguinte: “O surpreendente é que esse povo não tenha linguagem escrita...” E ninguém o julga absurdo.

Daí, na ocasião de um centenário de Shelley, na mesma semana e em três revistas literárias, três rapazes, de instrução idêntica e de idênticas universidades, podem escrever artigos críticos sobre Shelley, censurando-o com o elogio mais pífio possível, e em tom idêntico, como se estivessem fazendo um grande favor a Shelley ao citá-lo, e ninguém pensa que uma coisa dessas demonstra que existe algo terrivelmente errado em nosso sistema literário.

E naturalmente esses incidentes reinstalam as perguntas sobre o que percebem as pessoas ao ler um livro, e por que uma pessoa percebe um padrão e nada absolutamente de outro, e como é estranho ter – como autora – uma visão tão clara de um livro visto de maneiras tão diversas pelos leitores.

Desse tipo de pensamento surgiu uma nova conclusão: não é apenas infantil um autor querer que os leitores vejam as coisas como ele as vê, que compreendam a estrutura e o objetivo do romance da mesma forma que ele – o fato de o autor desejar isso significa que ele não compreendeu um ponto fundamental. Qual seja, que livro é vivo e potente e fecundo e capaz de promover idéias e debates apenas quando seu plano e estrutura e objetivo não são compreendidos, porque o momento em que sua estrutura, seu plano e seu objetivo são percebidos, é também o momento em que não existe mais nada a ser tirado dele.

E quando o padrão e a estrutura de um livro são tão óbvios ao leitor quanto o são para o autor, talvez tenha chegado a hora de jogar o livro de lado e começar de novo outra coisa nova.

Doris Lessing, junho de 1971

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